Há mais de cinquenta anos um rapazote, cruzando as
fronteiras entre a adolescência e a juventude andava pelo interior do Rio
Grande do Sul, vendendo livros para poder continuaar os estudos e, quem sabe,
libertar-se da pobreza financeira da família.
Tratava-se de rapaz com dificuldades de iniciar novas
amizades e contatos. Nesta fase inicial de abordagem era com muito esforço que
conseguia falar com estranhos e, pior, vender-lhes alguma coisa.
Mas a necessidade obriga o ser humano a matar um leão por
dia. E, de fato, sair do lugar onde estava rodeados de amigos, familiares e,
com dinheiro apenas para a passagem de ida , um mostruário de livros e várias
revistas para vender, exigia uma coragem e uma disciplina que o tal adolescente
não sabe onde conseguia.
E lá se foi, num mês de julho, com frio e tudo, para
Sobradinho, pequena cidade de italianos e alemães, mais italianos, penso,
agricultores familiares na maioria. Tudo apontava para uma guerra inglória e a
incerteza quanto à vitória apavorava o rapaz.
Nesta tremenda pressão psicológica, na solidão, num
quartinho que parecia uma cela de cadeia, o ânimo e o otimismo estavam no décimo-quinto subsolo ...
O levantar-se, olhar para o tempo, torcendo para que
estivesse chovendo e assim ter desculpa para ficar no quarto, lugar deprimente,
mas menos ameaçador do que abordar estranhos exigia um esforço sobre-humano.
Cada pessoa que passasse na rua era um inimigo possível a
ser vencido. O dono de um armazém, loja, bar, escritório, consultório era aquele
que poderia destruir o pouco de ânimo que porventura restasse. Tocar uma
campanhia era cutucar um vespeiro de onde poderiam vir terríveis abelhas
africanas e, raramente, alguma abelha sem ferrão. A possibilidade de ser
maltratado era real, embora na maioria das vezes as pessoas o recebessem
educadamente e com cortesia.
Se na primeira visita saísse alguma venda, o Sol aparecia
no horizonte, sorridente, iluminando e aquecendo a alma do sofrente vendedor.
Caso, ao contrário, as primeiras abordagens fossem infrutíferas, a vontade era
de sair caminhando, caminhando, para só parar quando não mais restassem forças.
Qualquer trabalhador, por mais humilde que fosse, era
invejado: "esse não precisa vender livros". E queria ser gari, motorista de taxi, cobrador de
ônibus, garçon, qualquer coisa que não fosse vender livros. Eram pessoas que
tinham seu salário (e podia ser miserável), tinham sua casa (e podia ser um
barraco), uma família que o aguardava, não um frio e úmido quartinho de pensão
para ser compartilhado apenas com seus medos e certeza de que tudo ia dar
errado.
Pois nesse estado de espírito saiu o
homenzinho para mais um dia de vendas: o tempo conspirara e não chovera, sequer
estava nublado e o frio não era severo. Era julho, mas soprava um vento norte,
vento quente. De fato, não havia justificativa para ficar parado.
E assim se foi o guerreiro, querendo ser atingido em
batalha para voltar à segurança incerta do quartinho. Só que tudo conspirava
contra e a opção era vender ou vender.
Eis que aí, ao dobrar uma esquina, vinha em sentido
contrário uma turma de adolescentes, felizes todas, com o rosto irradiando
otimismo e fé no futuro.
O importante, porém, não era a turma toda, mas uma das
meninas, a mais sorridente e simpática: caminhava de muletas e, pelas suas
pernas, dava para ver-se que fora uma das vítimas da paralisia infantil
(poliomielite), cujas vacinas preventivas ainda não haviam atingido toda a
população.
Tem coisas que a gente nunca mais esquece: o sorriso
daquela menina quase levou o desanimado às lagrimas, se é que não levou, como agora acontece, somente com a
lembrança daquele sorriso.
Se ela, menina linda, castigada pela estatística sanitária,
conseguia, mesmo sabendo que nenhuma culpa tinha pela tragédia de sua vida,
irradiar um sorriso tão contagiante, tão poderoso, capaz de reanimar um
vendedor desistente, por que ele, saudável, caminhando naturalmente e com
energia haveria de entregar a rapadura?
Talvez tenha sido aquele sorriso que fez o rapaz tomar
tenência, firmar propósito, a ponto de vender tão bem, que em apenas duas
semanas de trabalho vendeu mais do que a maioria dos colegas em todo o mês.
Não sei onde foi a italianinha linda que fez renascer num
adolescente a fé em sua potencialidade. Não sei se os descaminhos da vida não a
tornaram uma velha amargurada e ranzinza. Não sei se ainda está viva, se ainda
possui aqueles dentes lindos, se aqueles olhos ainda sorriem.
Sei apenas que existem pessoas que chegam ao mundo com a
missão de torná-lo melhor, de minimizar os sofreres, de trazer luz aos caminhos
sombrios.
Gringa de Sobradinho: que o Universo conspire para que
ainda tenhas o poder de pelo menos sorrires para o espelho e enviar ao fundo de
tua alma a mesma fé e alegria que deste a um introspectivo adolescente que
conseguiu vencer seus invisíveis monstros interiores.
Continua como eras: se não conseguires reavivar outros
vendedores, reanima a ti mesma para que o final de teu caminho seja primaveril, florido, ameno, com um lindo Sol
te mandando um sorriso e o mesmo vento
Norte morninho beije tuas faces já enrugadas de tanto sorrir para a vida.
16
de outubro 2022-10-16
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