O internauta colabora

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sábado, 11 de agosto de 2018

Homenagem a um Pai - o Meu - seu Hilário


O Citroen do Seu Hilário

Meu pai sempre foi trabalhador. Um homem sem estudos, que aprendeu a ler na Bíblia, que somava, multiplicava, dividia e fazia outros cálculos, tudo “de cabeça”, primeiramente por milhares, centenas, dezenas, unidades, numa rapidez espantosa. Que fazia sermões de mais de hora na igreja adventista do sétimo dia, sem um única anotação. E citando longos trechos bíblicos sem tirar nem por uma vírgula.

Memória prodigiosa, inteligência vivaz, mas, mesmo unindo essas qualidades à grande capacidade de trabalho, não conseguiu, como o filho que escreve, deslanchar muito em termos financeiros.

Vendia livros, educação, sonhos, saúde, mas o retorno para o bolso não era, assim, uma Brastemp.

Sempre sonhou em ter um carrinho para suas andanças como vendedor de livros (colportor, como dizem os adventistas).

Tanto sonhou, lutou, economizou que, lá pelas tantas, em 1961, por aí, conseguiu comprar uma Ford 1929 – camioneta. Tinha apenas o banco da frente e atrás a carroceria de madeira, embora incorporada ao carro, para cargas.

Apelidamos de Jabureca. Com ela a família saía a “colportar”. Até hoje nunca se esclareceu direito como um carro daqueles, com um motorzinho fraco, conseguia carregar nove pessoas, mais bagagens, em estrada péssima como era a de Santa Maria a S. Vicente do Sul, na época. Isso sem falar nos pneus, aqueles com desenho pé-de-galinha, fininhos, duas lonas, que milagrosamente suportavam todo aquele peso, estourando ou furando apenas a cada vinte ou trinta quilômetros. E isso não é mentira ...

O motorista era o futuro genro, Rubim, pois o seu Hilário tinha dificuldades em aprender a dirigir. Talvez pela origem de homem do campo, lavrador, fazedor de força, não conseguisse muita coisa em termos de coordenação, delicadeza, calma, para dirigir um carro.
Mas a Jabureca era valente e conseguiu enfrentar todo um período de férias de verão, com o pessoal vendendo livros em Sta. Maria e indo para a chácara em S. Vicente, nos finais de semana. Isso com remendos e mais remendos de pneus.

Como falava, sempre o pila escasso e as despesas imprevistas. Inesperadamente a mãe, dona Lourdes, teve um grande esgotamento nervoso, aliado a uma possível crise de depressão que a deixou de cama por meses. E vieram contas de médico, de farmácia, de hospital, etc. A Jabureca não subsistiu à crise e foi vendida.

Seu Hilário poderia ter muitos defeitos, mas não o de preguiçoso ou desanimado por dificuldades.
O sonho persistia – comprar outro carro.
E dois anos depois aparece na Chácara o famoso Citroen 1948, o “Cutroen” como dizia o tio Artidoro.

Lembro da enorme alegria que tive quando peguei uma carona até São Vicente, para cortar o cabelo, numa saída da família para vender livros na fronteira. Ao entrarmos na estrada o pai mandou o genro Rubim parar.
Não entendi o porque.

Mandou-me descer do carro. Achei que iam me mandar de volta para casa, temendo supercarregar o Citroen e estourar um pneu.

Já estava quase chorando, quando ele me mandou fazer a volta e entrar no lugar do motorista.

Caminhando nas nuvens, lá me aboletei.
Uma aulinha rápida e prática: como debrear, fazer a mudança, essas coisas.

Pronto, sem jamais ter feito aquilo antes, arranquei sem apagar o motor. Deu um solavanco, mas nos fomos, eu, motorista de um carro cheio de gente. Coisa até perigosa, mas de um poder como fonte de felicidade para um guri, que não se pode descrever.

Na entrada da cidade parei e devolvi a direção ao motorista titular.

Eles se foram rumo a Rosário do Sul e eu fui até a prima Dinorá, que me preparara, como professora, ao “Exame de Admissão ao Ginásio”, espécie de precoce vestibular, para se entrar no que hoje seria a quinta série ou ano do ensino fundamental .

E lá fui em nobre missão, de lhe agradecer pelo que fizera, gratuitamente, e com enorme eficiência, tanto que passei nos dois colégios onde prestei o tal exame. Como mimo especial, levei-lhe os dois volumes do “Novo Tratado Médico da Família”, um dos produtos com que a família ganhava a vida nas vendas.
Além de entregar o presente, o que mais queria, era me vangloriar para minha professora:
- E sabe quem veio dirigindo da Palma até aqui? Eu.

Ela não queria acreditar, mas sabia que não era piá de mentiras.

- Acho que o Hilário tá caduco – foi o comentário.

Caduco ou não, o fato é que aquele homem meio quietão, fechado, de poucas palavras, pensara na felicidade de seu filho mais novo e oferecera a direção do Citroen, o seu bem mais valioso.

Por semanas revivi aquela aventura única.
Era motorista!
Ruim, aprendiz, mas era motorista.

Uns quatro anos depois o Citroen, com longos intervalos de garagem por falta de dinheiro para manutenção, ainda estava com a família.

Aí eu já andava pelos quinze, dezesseis anos e fizera uma viagem aventuresco-vendedora por necessidade, a pé, entre São Borja e Garruchos, algo em torno de 120 km.

Pensem bem, um piá de 16 anos, de fazenda em fazenda, sozinho, vendendo livros. Hoje acho que mandariam prender um pai que fizesse isso.

Fiz as vendas, fui bem sucedido e, na hora de entregar os livros e receber os trocos, fomos de Citroen.

Para variar, estava com defeito, sem freio. Fizemos toda a viagem contando apenas com a redução de marchas a fim de parar o bólido.

No primeiro dia fomos de Santiago a S. Borja sem problemas. No segundo, já entregando livros, fomos até as proximidades de Garruchos.

No amanhecer seguinte o Citroen não pegou, nem com reza.

Tentamos todas as formas possíveis e imagináveis, chamamos um mecânico e nada.

Lá pelas tantas ele sentenciou: corrente do comando de válvulas deve ter arrebentado ou “pulado”.

Voltamos de ônibus.

Com muita luta conseguiu-se a tal corrente e numa outra viagem, somente eu e o seu Hilário, fomos arrumar o veículo e tentar o retorno, ele ou eu de motorista.

O mecânico estava certo, trocou a tal corrente e o motor roncou.

Hora de voltar.

Seu Hilário de motorista. Arrancou relativamente bem, fez a mudança para segunda, terceira nos conformes. Mas veio uma subida e a necessidade de reduzir para segunda.
Aí encrespou: o motorista não conseguiu. Bufou de brabo, mas deu o braço a torcer.

- Rapaz, acho que tu é que vai ter que dirigir.

Eu não queria ...

Faceiro como guri de bombacha nova assumi o volante e me fui.

Andamos uns três, quatro quilômetros e apareceu um barulhão, como se a caixa de câmbio estivesse debulhando-se ou algo parecido.

Tivemos que parar, levar o carro para a sombra de um cinamomo, numa fazenda à beira da estrada e, de novo, voltar de ônibus.

Por falta de dinheiro o conserto foi adiado, adiado, adiado.
Ainda passei por aquela estrada mais uma ou duas vezes e o velho Citroen 48 lá estava.

Fui estudar no internato adventista em Taquara e o Citroen continuava em Garruchos.

Como o aperto financeiro foi grande, não houve outra saída senão oferecer o veículo ao fazendeiro, que, não se sabe porque, acabou comprando.

Quase 50 anos depois, faço o trajeto de avião, em meu trabalho de fotos aéreas. E fotografei a fazenda onde faleceu o Citroen do seu Hilário.

Conversando com o fazendeiro, descobri que fazia apenas dois ou três anos que ele se descartara do Citroen, como ferro-velho. Até fomos ver se encontrávamos as placas no galpão, mas não conseguimos.

Ali morrera um dos mais caros sonhos do seu Hilário: ter e dirigir seu próprio carro.

Houve época em que eu tive condições de lhe comprar um carrinho, mas sabendo da sua dificuldade em dirigir, não fiz.
Seguidamente o levava às suas lavourinhas com meu carro e só agora me dou conta de que em nenhuma ocasião passei a direção para ele.

Que iria se atrapalhar era certo, mas que ficaria feliz, mais certo ainda.

E eu preocupado com a segurança, com eventuais danos ou prejuízos. Mas ele não se preocupara, quando me ofereceu a direção de um carro cheio de gente, embora eu tivesse apenas onze anos.

Pensara apenas em me fazer feliz.

A gente às vezes é cruel, mesmo com a melhor das intenções.

Será que o incômodo de uma batida ou amassado, uma quebra de caixa ou embreagem por falta de jeito, não valeriam a pena para a suprema felicidade de vê-lo sentir-se, de novo, dirigindo um carro, mesmo que não fosse propriedade sua, mas dum filho?

Várias vezes o remorso me aperta o peito ao dar-me conta de que nunca retribui a felicidade que tive, quando aquele homem, aparentemente pouco sensível, parou tudo e me colocou na direção do seu Citroen, só para ver o filho extasiado de tanta emoção.

E a felicidade dum pai realizando um sonho não compensa os eventuais trocados gastos com chapeador?

Espero sinceramente que o falecido Citroen tenha ido para o mesmo Céu onde está o seu Hilário, que deve andar vendendo livros, sonhos, saúde e sempre especulando se alguém sabe de algum carrinho barato à venda.

Se por lá Hilário e Citroen não se encontrarem, acho que o Céu não é tudo isso de que tanto falam ...