Esclarecimento: este agradecimento estava programado para ser enviado ao Zanardi, assim que tivesse condições de lê-lo, pois estava traqueotomizado e tive notícias de que ele estava melhorando. Mas a ceifeira nos traiu e foi mais ágil. Queria muito, mesmo com 52 anos de atraso, reiterar-lhe que nunca esqueci o apoio recebido. Claro que na época fiz meu agradecimento, mas desejava que ele soubesse que nunca esqueci aquela demonstração de carinho e amizade genuínos.
Dito
adolescente tinha dezessete anos, alguns anos mais jovem do que os demais
concorrentes, estes, na maioria, cursando o último ano do segundo grau. Como se
sabe, na adolescência, dois ou três anos a mais ou a menos representam uma
diferença abissal. Por isso niguém levava fé no dito cujo concorrente.
Mas houve um
sujeito, não concorrente, mas também com seus dotes de orador, como se verá,
que resolveu acreditar no "Ludovico", apelido dado pelos colegas por
dois motivos: primeiro, era irmão do também apelidado "Professor
Pardal", que realmente lecionava em tal Instituto e, segundo, por viver sempre inventando e aprontando
artes.
O
desacreditado concorrente, para completar, iria comparecer ao solene concurso,
onde todos se vestiam com o que de melhor dispunham, num traje meio bizarro,
terno gravata e, destoando, com um pé de
sapato e outro de chinelo-de-dedo. Tal "fantasia" era forçada por um
furúnculo num dos dedos do pé, coisa muito comum nessa fase da vida.
Além de ser
o mais jovem, aloprado que nem o Prof. Ludovico, para completar, capengando de
um pé ... Tudo preparado para que o referido concorrente fosse o último
colocado, na falta duma classificação pior ...
E o tal
Ludovico realmente sentiu o peso da responsabilidade e estava inseguro, de
fato. Por isso procurou aconselhar-se com um colega de mais idade, dois anos de
estudo a mais, orador de sua turma no Científico e do Clube José Amador dos
Reis, clube este, que buscava incentivar estes e outros talentos da rapaziada.
- Olha, não
tenho nenhuma atração especial, não trago material ilustrativo ou qualquer
recurso que aumente o impacto de meu discurso. Tô bem desanimado.
O então
vice-preceptor do colégio foi categórico:
- Não senhor,
tu vais é mostrar pra eles o teu talento. Eu te conheço e sei que tens
condições de ganhar este concurso ...
Vindo de um
sujeito três anos mais velho, orador em duas associações (turma de formandos e
clube de incentivo a novos talentos), aquilo já me deu uma certa esperança.
- Tchê, a
única forma de eu impactar mais do que eles, com suas ilustrações, experiências
e outros recursos é não ler o discursinho. Falar no peito e na raça, mas tenho
medo de me atrapalhar, esquecer parte da fala e acabar fazendo fiasco.
Ao que
respondeu:
- Que
fiasco, que nada. Tu não é o Professor Ludovico? Todo o cientista louco tem boa
memória. Confia nela e deixa o papel no bolso. Se te apertares, puxa o dito e
começa a ler dali em diante. Nada de errado nisso.
- E como vou
saber se o volume da voz, a entonação, os gestos estão bons?
- Vamos
combinar o seguinte: eu sento num local de tua fácil visualização. Mão com a
palma para baixo, à meia altura - estás te saindo mais ou menos. Se tiveres que
falar mais alto, mão com a palma para cima e subindo. Se estiver tudo bem, dedo
polegar no tradicional positivo.
- Certo.
Estamos combinados.
Chegou a
hora e lá me fui, capengando, suando até pelas unhas, de nervoso, inseguro se devia ou não puxar o papel
e ler minha fala, como todos os demais.
-
Excelentíssimo Senhor Diretor desta Escola - comecei, sem o papel e fiz toda a
saudação sem o amuleto.
Resolvi
bancar o corajoso e larguei o primeiro parágrafo no peito, na raça e na memória
...
"Guardada
com carinho num canto ..."
E o pessoal
aguardando que o Ludovico puxasse o papelucho-cajado salvador.
Mas que
papel que nada. Segundo, terceiro, quarto parágrafos e nada do guri sacar do
papelório.
Só que o público e os jurados não contavam com minha/nossa astúcia: é que desde o
início, havia um sujeito enlouquecido na assistência, que não fazia um mero
gesto de positivo com uma das mãos. Começou com a mão direita erguida, depois juntou a
esquerda e, para que não pairasse dúvida sobre a excelência de meu desempenho
oratório, não se conteve e ficava de pé seguidamente, com as duas mãos
positivando!
Com tal dose
de entusiasmo, me enchi de brios e prometi para meus botões e chinelo-de-dedo
que não puxaria do papel nem que chovesse canivete.
Lá pelas
tantas, esqueci uma parte do discurso, mas lembrei-me do que tratava. Me atraquei
no improviso e, justo em parte onde
havia umas frases no imperativo, conjugação verbal mui problemática. Mesmo
assim não errei e, para minha sorte, o branco passou.
O sujeito
não parava de erguer-se e positivar meu desempenho invectivante sobre os
terríveis malefícios do álcool.
Não fosse
aquele apoio incondicional, público e assumido, tenho minhas dúvidas sobre o
resultado que veio depois:
O
desacreditado "piá arteiro", palhação, aloprado deu um
"chocolate" nos concorrentes.
A galera
gostou tanto do resultado que este escrevinhador/orador, foi conduzido pelos
demais colegas em delírio, erguido nos ombros da rapaziada até o dormitório,
coisa que nunca acontecera nem se repetiu depois.
Não, não
pensem que estou aqui para me vangloriar: tenho absoluta certeza de que aquela
vitória teve um único responsável:
LOURENCO DANIEL ZANARDI
Que foi apoiar outros amigos em algum
lugar do Universo no dia primeiro de fevereiro de 2021.
Zanardi é o do centro, de pé |
Como se vê, foi orador de sua turma, tinha como alvo cursar Medicina, o que realmente fez. Salvou muitas vidas e possivelmente tenha sido infectado pelo Coronavírus tentando salvar outras. |
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